sábado, 26 de setembro de 2009

XV



Se não for sonho
não vale a pena viver
Pois de sonho em sonho
aprende-se a ser

Nada mais
que o sonho,
perguntareis?

Nada mais simples
para prender-me

Nada mais simples
para perder-me


Lindolf Bell
In ‘Código das Águas’

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Sopra-me


(Photography by Fernando Campanela)

Sopra-me
que ao de onde procedo
haverei com levezas
de, então, retornar.
Com o calor de teu sopro,
de teu insuflar,
meus versos,
como pelúcias e pétalas,
no regaço das tardes,
no jardim das estrelas,
haverão assim de cair,
haverão de pousar.

Fernando Campanella

quarta-feira, 23 de setembro de 2009



Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.


Alberto Caeiro
(Fernando Pessoa)

terça-feira, 22 de setembro de 2009

"Only the dead don't die"




Only they are left me,
they are faithful still
whom death's sharpest knife can no longer kill.

At the turn of the highway, at the close of day
they silently surround me, they quietly go my way.

A true pact is ours, a tie time cannot dissever.
Only what I have lost is what I possess forever.


Rachel Bluwstein
(Russia- 1890-1931)

UMA ESPÉCIE DE PERDA



Usamos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis e linho e uma
cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,
gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.
E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por
Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma
cama.

Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

( - o jornal dobrado, a cinza fria, o papel como um aponta- mento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor
mais intensa.
A campainha da porta era o alarme de minha alegria.

Não perdi a ti,
perdi o mundo.


Ingeborg Bachmann
Trad:Judite Berkemeier e João Barrento)
(Austria -1926-1973)

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Por Entre Os Sons da Música



Por entre os sons da música, ao ouvido
como a uma porta que ficou entreaberta
o que se me revela em ter sentido
é o que por essa música encoberta

acena em vão do outro lado dela
e eu sinto como a voz que respondesse
ao que em mim não chamou nem está nela,
porque é só o desejar que aí batesse.


Vergílio Ferreira,
in 'Conta-Corrente 1'

Feliz Ano 5.770 !!!



Minhas sinceras homenagens a todo povo judeu, Feliz Ano 5.770,
שתהיה לך שנה מתוקה נפלאה ומלאה בדברים טובים

שנה טובה

sábado, 19 de setembro de 2009

Fim das Ruas



Morre a numeração cansada;
este é um limite. Daqui,
o horizonte prolonga a solidão de areia.
Uma chama pestaneja pelas noites,
ilumina um pedaço de pão compartilhado.
Todo possível ruído
foge em silêncio;
só os cachorros adoram a lua.
O frio trêmulo lastima a pobreza
e já é desprezada a bela chuva
pelo seu costume de invadir as casas.
Morrer-se aqui é apagar os olhos
para não ver os sofrimentos.
Todos usam palavras iguais para o morto:
tem um rosto tão sereno.

Choro de uma criança nova!
Há outro herdeiro dos sofrimentos.


Arturo Herrera
Tradução de Ronaldo Cagiano
(1974- Argentina)

Chuva


(Imagem de Steve Johnston)


Chuva morna, chuva de verão
Borbulha de arvores e arbustos.
Oh! Como é bom e cheio de benção
Uma vez mais sonhar de verdade!


Quanto tempo fiquei aqui fora,
Quão estranha essa sensação:
Habitar a própria alma,
O estranho, sem atração.


Nada quero, nada peço.
Baixinho cantarolo sons de criança,
E, surpreso, chego ao berço
Dos sonhos quentes de folgança.


Coração, como estás machucado
Porem feliz, remexendo cegamente,
Nada pensar, nada saber,
Respirar e sentir, somente.



Hermann Hesse
In: Caminhada

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

QUASE UM DEVANEIO




Renasce o dia, pressinto-o
no alvor de prata gasta
pelos muros:
Uma luz frouxa listra as janelas fechadas.
Retorna o acontecimento do sol
mas sem as vozes difusas,
os estrépitos habituais.

Por que? Penso em um dia enfeitiçado
e da ronda das horas sempre iguais
me desforro. Transbordará a força
que em mim crescia, inconsciente mago,
há tanto tempo. Então me assomarei à janela,
farei sumir as altas casas, as alamedas vazias.

Terei diante de mim uma paisagem de neve intacta
mas suave como se numa tapeçaria.
Deslizará no céu flocoso um raio tardio.
Prenhes de luzes invisíveis selvas e colinas
me farão o elogio dos alegres regressos.

Lerei feliz os negros
sinais dos ramos contra o branco
como um alfabeto essencial.
Todo o passado de uma só vez
se fará presente.
Som algum turbará
essa alegria solitária.
Riscará o ar
ou pousará numa estaca
alguma pega.


Eugenio Montale
Poesias(Trad. de Geraldo Holanda Cavalcanti)
(Itália 1896-1981)

sábado, 12 de setembro de 2009

A chuva...



A chuva entorna na paisagem calma
uma indolência de abandono e sono.
Paisagem triste como a de minha alma...
A chuva é um longo sono de abandono...

Olho através do espelho da vidraça:
dorme o jardim sob os soluços da água...
Na rua, alguém cantarolando passa,
cantarolando a minha própria mágoa.

Quem será esse vulto que se apossa
da fina dor que em minha vida existe,
para cantá-la assim, num ar de troca,
de uma maneira que me põe mais triste?

E olho através do espelho da vidraça:
dorme o jardim sob os soluções da água.
Na rua adormecida, ninguém passa...

A chuva canta a minha própria mágoa.

Onestado de Pennafort
in Poesia

Escada de Sonho...



Sobe ao céu meu pensamento,
Como uma espiral de incenso...
E eis numa névoa de sol,
Minha escada de Jacó!

É por ela, quando cismo,
Que desces ao meu abismo...

E ascendo aonde vives tu
Entre as estrelas, no Azul...

A escada de sonho, à tarde,
É um íris para a saudade.

É a luz eterna do Amor
Que irradia entre nós dois...

E eleva-se o pensamento,
Além da morte e do tempo.


Da Costa e Silva

TARDE



A febre da tarde
Se chama tarde,
Velho sono arrancado,
Cedo demais para ser noite,
Sem outro nome, pois não há nome
De tarde além da tarde.

o amor tenta falar mas soa
Tão perto em seu próprio ouvido.
Os tic-tacs escutam
O que os tic-tacs retrucam.
A febre preenche onde gargantas se mostram,
Mas nesses horrores nada tenta engolir
Enquanto a sede persegue a tarde
Até o rouco pôr-da-sol.

O entardecer surge com bocas
Quando a tarde pode falar.
A ceia e a cama começam e terminam
E o amor obscurece o pensar.
Mais tardes dividem a noite,
Novo sono arrancado,
Suspensão desperta entre sonho e sonho ­
Nunca soubemos quanto.
O sol se atrasa por horas de logo e logo ­
Então chega a febre veloz chamada dia.
Mas a febre lenta se chama tarde.


Laura Riding
tradução: Rodrigo Garcia Lopes

terça-feira, 8 de setembro de 2009

INSTANCIA



Quem volta ao lugar perdido
quer ver o tempo.
Não vê a casa, o muro, o degrau mais fino:
quer no bater do coração o antigo.


Espanta a resistência daquela arvore,
a mesma e outra nesta floração.
Espanta a cor fiel dos azulejos,
a penumbra e o tom daquele quarto
desenhados na pauta de outros olhos.


Quem retorna não mora no outro tempo,
embora imite o rosto o ancestral.
Quem retorna medita.
Não cruza o corredor
como planava a mosca distraída.


Pode-se sentar na escada, prover os olhos
com a massa do cenário inocente.
Livre-se o coração para a verdade
desta arvore em gala de outro amor.



Alcides Villaça
In: Viagem de Trem

domingo, 6 de setembro de 2009

Às vezes




Às vezes julgo ver nos meus olhos
A promessa de outros seres
Que eu podia ter sido,
Se a vida tivesse sido outra.

Mas dessa fabulosa descoberta
Só me vem o terror e a mágoa
De me sentir sem forma, vaga e incerta
Como a água.


Sophia de Mello Breyner Andresen
(Portugal-1919-2004)